sexta-feira, 3 de maio de 2019

Como a leitura de ficção desenvolve nossa empatia

Meu pai, Irving Goleman, foi um filólogo e professor nascido no fim do século 19. Ele morreu quando eu tinha apenas 15 anos; desde então, procurei conhecer mais sobre seus cursos e seu fascinante legado como professor com seus ex-alunos e muitos dos seus artigos publicados.
O principal curso de Irving — Mundo Literário: Autobiografia da Civilização — foi além da abordagem clássica para incluir mitos, trovas populares e registros orais dos mais antigos aos tempos modernos. A primeira lição que ele passava era uma autobiografia que levava consigo o lembrete: “quem sou eu?”
Com base nessa lição, ele poderia formular uma lista de leitura personalizada para cada estudante. Ele escolhia livros que dialogavam com os problemas que cada aluno tinha passado na vida.
Por exemplo, uma estudante chamada Emilie assinalou o tópico Um Estudo de Conflitos na Alma da Feminilidade. Ela deveria ler Othello e Antônio e Cleópatra de Shakespeare, Fedra de Racine, Hedda Gabler de Henrik Ibsen e, de Eugene O’Neill, Interlúdio Estranho.
Essa bibliografia personalizada é uma forma de biblioterapia, termo genérico para a antiga prática de indicar livros como terapia. Livros — em especial literários, poesias e peças — podem nos ajudar a lidar melhor com transições e conflitos em nossas vidas. Enxergar a maneira como compartilhamos nossa humanidade, mesmo com personagens fictícios, é útil para que nos coloquemos no lugar dos outros.

No livro The Moral Laboratory (sem tradução para o português), Frank Hakemulder descreve que pessoas que leram uma narrativa fictícia de uma mulher algeriana melhor entenderam sua perspectiva e o papel do gênero na Algéria do que aqueles que leram uma reportagem sobre as dinâmicas de gênero naquele país.

Dessa forma, a oportunidade de criar empatia com a história pessoal de alguém e conhecer sua vida íntima — mesmo de uma vida que não existe — melhora nossa compreensão do mundo dela.
Ler história de pessoas com diferentes origens e culturas também funciona como um fator redutor de vieses inconscientes.
Um time de pesquisadores da Universidade Washington Lee propôs a um grupo ler um trecho de Saffron Dreams (sem tradução para o português), um romance de Shalia Abdullah sobre uma muçulmana não-estereotípica vivendo em New York City. O trecho incluía um monólogo interior e descrições sobre a cultura muçulmana.
Comparando grupos controlados, que leram ou o trecho da história ou um artigo sobre carros sem relação com o tema, os que leram sobre a mulher muçulmana apresentaram uma visão menos enviesada quando olharam rostos caucasianos e árabes.
Ler ficção e aprimorar a empatia também convergem em nível neurológico. A empatia cognitiva — habilidade de entender a perspectiva de outra pessoa e refletir sobre sua situação — ativa circuitos na junção têmporo-parietal na parte de trás do cérebro.
Essa região nos ajuda a refletir sobre o estado mental de outra pessoa, incluindo as situações que motivaram aquele estado. Tais circuitos também são ativados quando compreendemos o que lemos.
Estudos sobre o cérebro descobriram que, enquanto lemos histórias, neurônios-espelho no lobo parietal são ativados, mimetizando dentro do nosso cérebro o que acontece na história.
Esse mecanismo facilita a compreensão dos sentimentos e pensamentos dos personagens. Ou seja, ler histórias que contam a vida íntima dos personagens pode nos ajudar a cultivar mais empatia.

Lendo com foco

Bônus: Quando viajamos dentro das histórias, também fortalecemos nossa capacidade de focar. Ler livros — diferente de jornais ou artigos online — promove uma “leitura profunda” na qual os leitores mergulham na história e criam conexões entre o que eles estão lendo e o mundo ao seu redor.
Isso pode ajudar a explicar o porquê de pesquisas indicarem que a leitura de livros aumenta a expectativa de vida. Livros têm um grande impacto na longevidade, mais do que a leitura de revistas ou notícias; até mesmo ler apenas um capítulo por dia garante um aumento estimado em 23 meses no tempo de vida.
De acordo com os pesquisadores, “livros podem promover empatia, percepção social e inteligência emocional, que são processos cognitivos que podem conduzir a uma vida melhor”.
Nossa identidades — incluindo eventos que experienciamos e as pessoas nos influenciaram — existem nas histórias que contamos sobre nossas vidas. E nós entendemos os outros através das histórias deles.
Contos sobre origens, guerras e amores antigos antecedem a escrita em si. Quando lemos a história de outra pessoa — verdadeira ou não — nós expandimos nossa consciência sobre o que significa ser humano.
Meu pai passou sua vida a serviço da linguagem e dos outros. Ele advogou sua vida inteira em favor da igualdade e vivia de acordo um lema latino: “Eu sou um humano, e portanto nada humano é alheio a mim”.
Ele era apaixonado por compartilhar as riquezas do intelecto e via a comunidade universitária como um meio para essa finalidade.
Eis um comentário que ele fez em um artigo de uma de seus estudantes, advertindo-a a fazer sua parte “no contra ataque ao materialismo cínico da nossa era — com medo de sonhar com paz, amor e compreensão solidária. Nós que acreditamos na humanidade devemos manter nossos pés no chão — por exemplo, aprender o que for possível sobre a totalidade do que é ser humano, bom e ruim — no entanto, sempre persistir e agir com nossa fé de que há algo no espírito que é maior e mais enobrecedor do que a razão fria, do que o senso comum tímido, do que a segurança em primeiro lugar, do que o eu e meu.”

Texto originalmente publicado na conta do LinkedIn do autor e cedido gentilmente ao Administradores.com.

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