domingo, 9 de fevereiro de 2020

O Informante: a importância da confidencialidade e a busca pela verdade

Em todas as empresas pelas quais eu passei em minha carreira profissional (e tenho certeza que vocês também), havia um adendo (e muitas vezes até uma apresentação completa) sobre um tema para o qual nunca reservamos a devida atenção: a confidencialidade. A Confidencialidade caminha de mãos dadas com a pasta dos princípios de Ética de qualquer manual corporativo, e é definida como a propriedade da informação que não estará disponível ou será divulgada a indivíduos, entidades ou processos sem autorização. Em outras palavras, confidencialidade é a garantia do resguardo das informações dadas pessoalmente em confiança e proteção contra a sua revelação não autorizada.
O filme desta quinzena, o impecável O Informante (The Insider, EUA, 1999), apesar de trazer um tema central que foca no jornalismo investigativo (muito semelhante ao do excepcional drama Spotlight: Segredos Reveladoscujo texto eu já publiquei aqui no Portal Administradores), gira toda sua trama em torno da importância e valor moral da confidencialidade. O Informante é um eletrizante thriller que expõe como a gigantesca teia de mentiras da indústria do tabaco foi finalmente exposta pelo jornalismo investigativo, num dos maiores escândalos da história americana e mundial. No centro desta denúncia está Lowell Bergman (Al Pacino), o produtor do antológico programa jornalístico 60 Minutos, da Rede CBS; e um ex-cientista do tabaco, Jeffrey Wigand (Russell Crowe), o responsável por vazar as informações que se materializaram na referida denúncia.
O filme do diretor Michael Mann (dos espetaculares Fogo Contra Fogo e Colateral), se apoia em duas hastes morais que seguram sua narrativa, uma no primeiro terço da produção, e uma que se desenrola ao longo da metade final. E ambas giram em torno das questões que envolvem a confidencialidade. A primeira questão coloca Wigand em ruptura com a confidencialidade empregado/empregador, motivada pela sede de Bergman em tornar o escândalo público. A segunda coloca Bergman ao lado do veterano repórter Mike Wallace (Christopher Plummer), em uma verdadeira odisseia em que o jornalista trava diversas batalhas contra os executivos da própria CBS, que estão temerosos em levar a matéria ao ar, já que um eventual processo poderia destruir a emissora. Tal decisão inflexível e irredutível de Bergman parte principalmente do princípio de que ele rompeu com várias vertentes confidenciais no processo, inclusive, vazar suas fontes.
Wigand viria a revelar segredos dos laboratórios Brown & Williamson que eventualmente levaram a um acordo de 246 bilhões de dólares, decorrente de processos movidos contra a indústria do tabaco em todos os Estados Unidos. A edição do 60 Minutos que continha a denúncia foi essencial para esta decisão da justiça. De um modo geral, um acordo de confidencialidade é um contrato em que uma parte promete proteger a confidencialidade de um segredo que lhe é divulgado durante a prestação de um serviço ou durante uma transação comercial. O uso de acordos em contratos de trabalho, ou seja, com vínculo empregatício, também cresceu de forma considerável, acompanhando a evolução das empresas de tecnologia, que são baseadas praticamente em informações. Por isso, empresários, empreendedores e prestadores de serviços devem estar cientes de como usar estes acordos de forma adequada.
A decisão de Mann e seu co-roteirista, Eric Roth (Forrest Gump: O Contador de Histórias), de centrar a história em Bergman (e não em Wigand) e mostrar tudo o que aconteceu atrás das câmeras durante o caso, é extremamente acertada, pois permite que a história acompanhe o real escopo do alcance que a denúncia de Wigand atingiu. O filme, que começa como uma história de conspiração da bilionária indústria do tabaco, transforma sua narrativa em um retrato de uma crise ética do jornalismo americano. Teria a CBS se oposto à história apenas por temer um processo, ou haviam outros fatores envolvidos, como o desejo dos executivos em proteger o valor de suas próprias ações?

O filme é construído como um quebra-cabeça do qual várias peças continuam desaparecendo da mesa. O jogo começa quando Bergman contrata Wigand como um consultor em outra história envolvendo o tabaco. Ele fica sabendo que Wigand possui informação da indústria do tabaco que não só prova que a nicotina é viciante (fato que os presidentes das sete companhias de cigarro haviam negado estar cientes sob juramento perante o Congresso), como ainda escancara o fato de que aditivos são utilizados para tornar a nicotina ainda mais viciante. Sendo que um destes aditivos ainda é um conhecido carcinógeno. A questão é que Wigand teria assinado um acordo de confidencialidade com a B&W, e agora Bergman precisa encontrar uma maneira de contornar este acordo para que a verdade seja revelada.
Mann constrói primoroso suspense em cima do longo, lento e frustrante processo investigativo em torno da denúncia. Wigand à princípio está disposto a romper o acordo de confidencialidade, depois volta atrás. Bergman por sua vez, trabalha por trás das câmeras para manipular processos e a cobertura do Wall Street Journal, que trabalharia em conjunto com a CBS na cobertura da história. Ele espera conseguir vazar fragmentos da história de uma forma truncada e assim ter a posterior liberdade para expor toda a denúncia. Wallace acompanha Bergman durante todo o processo, e é ele o responsável por entrevistar Wigand para o 60 Minutos quando chega o momento. Uma advogada (Gina Gershon), explica a verdade para a equipe do programa: Quão mais verdadeiras forem as declarações de Wigand, mais danosas elas serão em um eventual processo sofrido pela CBS. O editor-chefe do 60 Minutos, Don Hewitt (o falecido Philip Baker Hall), prefere proteger os interesses da companhia, assim como Mike Wallace, o que deixa Bergman furioso, sozinho e de mãos atadas.
É então que Bergman simplesmente liga o botãozinho do f#%@-se, e começa a vazar informações e fazer ligações para emissoras competidoras, rompendo todos os protocolos de confidencialidade possíveis e imagináveis, como forma de libertar a história de suas restrições legais. Ou seja, Bergman deliberadamente se queimou na praça para que a história chegasse ao domínio público e Wigand não fosse taxado como um louco mentiroso. Hewitt, um dos patronos do jornalismo investigativo, é retratado com certa rispidez por Mann e Roth, que o enxergam como um lacaio corporativo. Já a imagem de Wallace sai intacta, graças a uma cena sensacional onde Hewitt diz que todo este imbróglio será esquecido em 15 minutos, e Wallace responde, "Não, isso acontece com a fama. Você tem 15 minutos de fama. A infâmia dura um pouco mais."
O perigo com filmes sobre jornalismo é sempre a dúvida que fica no ar se há alguma manipulação dos fatos ou não. A minha noção é de que filmes não são o primeiro lugar onde alguém deve procurar por fatos, de qualquer modo. Eu pelo menos vou ao cinema procurando por verdade psicológica, emoção e o coração de uma história. E não por anotações ou processos complexos. Entre suas rupturas de confidencialidade pelo bem maior, O Informante é perfeitamente real: as grandes empresas do tabaco mentiram; um homem sabia a verdade; o jornalismo desenvolveu a história, e a intriga do poder ajudou a torná-la pública.

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