
Durante a realização daquela tarefa, você chegou a estar tão absorto, tão abstraído, que nada mais poderia lhe preocupar ou ter alguma importância?
Ou, ao alcançar este estado de profunda imersão na realização da tarefa, você perdeu a noção do tempo, da fome, da própria consciência do mundo exterior e a noção do próprio ego? Um estado onde a tarefa que está sendo realizada e quem a realiza se fundem em uma só coisa?
Tal estado foi descrito pelo psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi como flow, “um estado mental no qual a pessoa, ao realizar uma atividade, fica totalmente imersa em uma sensação de foco energizado, envolvimento total e prazer durante sua execução”.
Em Português, “flow” significa fluxo ou estado de imersão total.
Neste estado, com foco e concentração máximos, toda a ação, todo o envolvimento e todo o pensamento fluem em sequência à ação, movimento e pensamento que lhes precederam, até o final da realização da atividade.
Neste estado, todo o seu Ser se envolve no uso das suas competências, tornando a realização da tarefa muito mais espontânea e natural.
Veja o relato de um músico que participou da pesquisa do autor sobre o tema:
Entrei em um nível de estado de êxtase tal que parece que eu não existia. Tive esta sensação várias vezes. Minha mão parecia ser independente de mim, e nada tinha a ver com o que se passava. Simplesmente eu ficava ali, observando em estado de respeito e encantamento. E a coisa fluía por si mesma.
O próprio Mihaly relata o fato ocorrido com seu irmão:
Fui visitar meu irmão mais velho faz pouco tempo. Ele está aposentado e seu hobby é estudar minerais. Ele me contou que, poucos dias antes, pegou um cristal para estudar em seu poderoso microscópio, logo após o café da manhã. Algum tempo depois, ele começou a ter dificuldade para enxergar claramente a estrutura interna e pensou que uma nuvem tivesse encoberto o sol. Olhou para fora e viu que já estava anoitecendo.
Em seu livro Finding flow- The psychology of engagement with everyday life (Basic Books, 1998), Csikszentmihalyi explica que o fluxo geralmente ocorre quando uma pessoa vai realizar uma tarefa com objetivos claros e específicos e que requerem respostas específicas.
Um bom exemplo é uma partida de xadrez. Pela duração da partida, o jogador tem objetivo e respostas bem específicas, permitindo que sua atenção esteja focada inteiramente no jogo, durante o tempo que a partida dure.
Para o autor, tal estado só é obtido quando existe EQUILÍBRIO entre o grau de dificuldade da tarefa (desafio a ser vencido) e as competências individuais para realiza-la.
Se a tarefa oferece pouco ou nenhum desafio, ou seja, as competências da pessoa são maiores que o desafio, certamente ela sentirá tédio, apatia e desinteresse em realizá-la. Por outro lado, se as competências foram menores que o desafio, ela se sentirá ansiosa, agitada e estressada, e também poderá não realizá-la.

Na figura abaixo, o autor define cada um dos estados mentais quando os diferentes níveis de desafio e competências são relacionados entre si.
Cada um destes estados é assim definido:
- apatia – sentimento onde o indivíduo não possui o nível de competência requerido para enfrentar o desafio;
- aborrecimento – resposta a um desafio moderado para o qual a pessoa tem mais competência do que a competência suficiente para realizar a tarefa;
- relaxamento – estado emocional de baixa tensão no qual há ausência de preocupação, a qual poderia ter como fontes a raiva, a ansiedade ou o medo;
- preocupação – resposta a um desafio moderado para o qual o indivíduo não possui competências adequadas;
- controle – o nível das competências da pessoa é maior que o nível do desafio para a realização da tarefa;
- ansiedade – estado mental que resulta de um desafio difícil para o qual a pessoa não possui competências suficientes;
- provocação – resposta a um desafio difícil para o qual a pessoa tem competências moderadas, e,
- flow – estado mental no qual a pessoa, tendo as competências desejadas, e realizando uma atividade, fica totalmente imersa em uma sensação de foco energizado, envolvimento total e prazer, durante a realização da mesma.
Em suas entrevistas com pessoas de diferentes níveis de educação e cultura, de diferentes profissões e religiões, o psicólogo húngaro demonstrou que existem elementos comuns sobre como é atingir o estado de flow:
1º – A pessoa está completamente envolvida naquilo que está fazendo, focada e concentrada, porque os objetivos são claros;
2º – Quando da execução da atividade, o sentimento é de êxtase, de se sentir fora da realidade (perda da sensação de autoconsciência);
3º – Maior claridade interna, ou seja, a tarefa é realizada conhecendo-se as necessidades (os porquês) de fazê-la e quão bem é realizada;
4º – Sabendo que a tarefa é possível de ser feita e que nossas competências são adequadas para tal;
5º – Uma sensação de serenidade é percebida, onde não existem preocupações (saúde, filhos, contas a pagar), além de uma sensação de crescimento além dos limites do ego;
6º – Tem-se a sensação de estar além da dimensão do tempo-espaço, ou seja, estando focado no presente (aqui-agora), as horas parecem passar como se fossem minutos;
7º – Motivação intrínseca, ou seja, qualquer coisa que produza o estado de flowtorna-se nossa própria recompensa sem exigir qualquer tipo de esforço;
8º – O envolvimento é intenso e natural;
9º – O feedback é direto e imediato (tanto os acertos como os erros na realização da tarefa são aparentes e podem ser corrigidos caso haja necessidade;
10º – Desenvolvimento de um sentimento de controle pessoal, tanto para a situação em si, como sobre o resultado final; e,
11º – Perda da consciência das necessidades físicas (fome, sede, vontade de urinar, etc.).
“O estado de flow é uma experiência subjetiva específica, que as pessoas atingem quando estão completamente engajadas naquilo que tem interesse e envolvimento, independentemente se for um artista, um pintor, um atleta ou um esportista de alto desempenho, não importando o local onde estejam. As pessoas não se distraem, ficam absorvidas naquilo que estão fazendo e o fazem sem esforço”, ensina Mihaly.
Agora, se as suas competências são inapropriadas para encarar o desafio e você quer fazê-lo, então de um passo atrás. Vá buscar o conhecimento que lhe falta para depois seguir em frente. Muitas vezes precisamos dar um passo atrás para depois dar dois para frente. E não se envergonhe por isso. Não nascemos sabendo tudo.
Convém lembrar que o estado de flow não ocorre continuamente durante todas as horas que trabalhamos, mas só ocorre quando o nível dos desafios a serem enfrentados se relacionam com o nível das competências para enfrentá-los, como já mencionado.
E, como cada desafio é enfrentado de forma individual, fica claro que o estado deflow também só é alcançado de forma individual. Não se consegue dois estados deflow de forma simultânea para enfrentar dois desafios ao mesmo tempo.
E aí, lembro da frase: quer fazer tudo bem feito, então faça uma coisa de cada vez.
Fazer várias coisas ao mesmo tempo (ser multitarefa) aumenta a chance do erro e, consequentemente, a do retrabalho.
Felizmente a Ciência já provou que nosso cérebro não é multitarefa, ou seja, conseguimos processar apenas uma coisa por vez.
O exercício constante do flow também contribui para que você “reinvente” e “recrie” seu trabalho pois ele lhe coloca cada vez mais em contato com sua vocação e pode acabar transformando aquela sua atividade rotineira, monótona e maçante em algo que lhe traga satisfação e gratificação.
Concordo plenamente com Seligman, quando ele afirma: “a escolha de um emprego por um indivíduo qualificado vai depender cada vez mais do flow que o trabalho lhe proporciona, e cada vez mais menos de pequenas ou, às vezes, consideráveis diferenças de salário.”
Uma das coisas mais importantes que acontece no estado de flow é que há ausência de qualquer tipo de emoção.
Em seu livro Felicidade autêntica – Usando a psicologia positiva para a realização permanente (Ed. Ojjetiva, 2009) – Seligman afirma que “no estado de flow não existem emoções. Embora as emoções positivas como o prazer, a alegria e o êxtase sejam mencionados ocasionalmente, quando é feito um retrospecto, elas não aparecem. Na verdade, o que está no coração do flow é a ausência de emoção, de qualquer tipo de consciência. A emoção e a consciência estão lá para corrigir a trajetória: quando o que você faz está perfeito, não há necessidade elas.”
E vai mais além, afirmando que “talvez o flow seja o estado que marca o crescimento psicológico. A concentração, a perda da consciência e a interrupção do tempo são a maneira que a evolução tem de nos dizer que estamos acumulando recursos psicológicos para o futuro.”
Para Goleman, o estado de flow apresenta algumas características:
- é uma experiência gloriosa; uma sensação de alegria espontânea, e mesmo êxtase;
- é um estado de autoabandono, o oposto da ruminação e preocupação;
- no estado de flow o que é difícil parece fácil, sendo que o auge do desempenho parece natural e banal;
- no estado de flow o cérebro “se acalma”, visto que ocorre uma diminuição da estimulação cortical;
- no estado de flow as pessoas não se preocupam com o sucesso ou o fracasso; o que as motiva é o puro prazer em si na realização da atividade.
Há, ainda, um último ponto a ser destacado, e que se relaciona com o estado de flow: o conceito de personalidade autotélica, também desenvolvido por Mihaly e que estabelece uma diferenciação entre realização e sucesso.
“A realização vem de dentro e se orienta para um fim que a própria pessoa se impõe. Daí a palavra autotélica, significando um fim (telos). Diferentemente de sucesso que, ao contrário, se orienta para fora, para aquilo que irá impressionar os outros conforme seus julgamentos”, de acordo com suas próprias palavras.
Do ponto de vista do autor, o ponto focal sobre a felicidade humana encontra-se noflow, visto que, havendo um envolvimento muito intenso com a realização da tarefa, o resultado final será sempre o sentimento de grande satisfação, de felicidade autêntica.
Aqueles que possuem este tipo de personalidade, que atingem facilmente o estado de flow, são pessoas que vivem com pouco ou muito pouco no que diz respeito ao seu conforto, poder, fama, entretenimento e bens materiais, além de serem mais autônomos e independentes por não se sentirem ameaçados ou seduzidos por recompensas externas.
Pessoas com personalidade autotélica registram, mais frequentemente, estados de emoções positivas e sentem que suas vidas tem mais significado e mais propósito.
Quando encontramos gratificação e satisfação em tudo o que realizamos, não importando o momento ou a complexidade, estamos tendo a oportunidade de crescermos como Seres Humanos Integrais e de chegarmos a estados de felicidade real e não a estados de felicidade imaginária ou passageira.
E quem foi que não nasceu para ser feliz?
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