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domingo, 3 de junho de 2012

Crescendo de suas forças simples*


Grandes obras da antiguidade e a engenharia cotidiana ajudam a contar a história da humanidade

Por Carolina Toneloto
Crescendo de suas forças simples*
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Desde a Pré-História, a engenhosidade humana é representada por inventos como a alavanca, a polia e a roda. Desde o período Neolítico (com o domínio sobre a agricultura e a domesticação de animais, e a consequente sedentarização), alguns vilarejos já eram feitos de tijolos. Por ter construído a primeira pirâmide do Egito (a pirâmide de Sacara), Imhotep é considerado, dentre outros títulos honoríficos, o primeiro arquiteto da História. 
Na Grécia antiga, Pitágoras e Euclides contribuíram para o desenvolvimento dos cálculos matemáticos que possibilitaram o surgimento da engenharia moderna. O império romano ocupou-se em abrir muitas estradas para a sua expansão e dotou suas cidades de aquedutos, cisternas, sistemas de esgotos, além de inventar o teto em forma de abóboda.
 
A luz, o sol, o ar livre envolvem o sonho do engenheiro
 
“As grandes obras da engenharia ajudam a contar a história da humanidade. Pode-se dizer que tais obras são o reflexo do ‘engenho’ humano”, afirma André Munhoz de Argollo Ferrão, professor da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Basicamente, a chamada ‘engenharia moderna’, ou, simplesmente, ‘engenharia’, consiste na aplicação de conteúdo científico às técnicas desenvolvidas pelo homem para o aparelhamento do meio ambiente em que vive, a fim de promover a civilização. Muitas obras da Antiguidade encerram conhecimentos bastante apurados de engenharia. Não somente as mais conhecidas, como as Pirâmides do Egito, mas também as obras ‘ordinárias’, que permitiram ao homem assentar-se em cidades e produzir alimentos. Obras de irrigação e drenagem são exemplos milenares de uma ‘engenharia do cotidiano’ de povos ancestrais”, complementa.
 
O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água
 
A engenharia é uma profissão moderna, apesar das origens muito antigas. Criada no século 18, na França, ela nasceu a partir da fundação da Escola Politécnica de Paris. Ocorreu, então, “um processo gradual de institucionalização do conhecimento construtivo, que antes era detido pelas guildas de ofícios, responsáveis por todos os tipos de obras”, conta Maria Luiza de Freitas, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Quando a Escola Politécnica de Paris foi fundada, ocorreu uma separação entre a arte de construir e a arte de projetar. Ela inovou ao propor novas disciplinas que se relacionam com a sociedade, a indústria e as mais modernas técnicas construtivas”.
 
Com a Revolução Industrial, as novas formas de produção alteraram profundamente a sociabilidade e as formas de pensar da sociedade do século 19. “A École Polytechnique fundou um novo sistema de ensino e de profissão capaz de atender às novas demandas de uma sociedade industrial nascente, que crescia em um ritmo intenso: o da máquina”, explica Freitas. A pesquisadora conta que, a partir de então, passaram a ser formados engenheiros e arquitetos capazes de inovar e atender a desafios mais complexos, como foi o caso de Gustave Eiffel, criador da famosa torre que leva seu nome, em Paris, França.
 
O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número
 
Os avanços das técnicas de construção também ajudam a contar a história da engenharia civil. Neste sentido, um exemplo importante é o da tecnologia construtiva com o uso do concreto armado, em meados da década de 1820. “O emprego do concreto armado em alta escala somente foi possível pela descoberta de sua propriedade de hidraulicidade e pela criação do processo industrial de fusão de diversos elementos químicos, que o tornaram mais resistente à compressão. Ao mesmo tempo, aprimorou-se o ferro (também pela fusão de outros elementos químicos em sua composição) para a criação do aço, mais resistente à corrosão e aos esforços de tração”, explica Freitas. “A junção dos dois permitia a constituição de um sistema construtivo calcado no antigo ‘principio trilítico’ (que consiste no uso de duas colunas unidas por uma laje horizontal), para que se pudesse ter uma estrutura moldável – portanto com propriedades estéticas –, capaz de vencer amplos vãos, e resistentes à umidade, ao fogo e à corrosão.”
 
O engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre
 
A partir do início do século 20, por influência do movimento moderno na arquitetura, marcos da construção civil contemporânea, como a Torre Eiffel, em Paris, ou a ponte do Brooklin, em Nova Iorque, passaram a ser vistos também como obras de arte. “Essas obras se tornaram paradigmas para uma nova prática. Desde então, uma ponte não é apenas um elemento estrutural por sua escala e dimensão, mas compõe a paisagem construída das cidades e das regiões rurais”, expõe a pesquisadora da UFPE.
 
No Brasil, algumas obras contemporânas são exemplares neste sentido. É o caso da ponte Maurício de Nassau, construída entre 1912 e 1917, na cidade de Recife, Pernambuco. “Além de realizar a sua função de ponte – unir as margens do rio Capibaribe –, seu projeto atende às questões de técnica construtiva (ao bater o recorde de vão construído no período), bem como de desenho de seu leito carroçável: ao lado da rua dos carros, há um passeio de pedestres com pontos de parada para observação do entorno”, descreve Freitas. “É uma obra de arte por excelência, construída pelo empreiteiro alemão Lambert Riedlinger, com cálculos do então estudante de engenharia civil Emílio Baumgart, tido como o pai do concreto armado no Brasil.”
 
Outra obra importante para a narrativa da história da construção civil brasileira é o Palácio Gustavo Capanema, antigo Ministério de Educação e Saúde Pública (Mesp), considerado a primeira obra de arquitetura moderna no Brasil. Construído no Rio de Janeiro, entre 1936 e 1943, a obra foi empreendida por um grupo de arquitetos brasileiros (Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dentre eles), com a consultoria do franco-suíço Le Corbusier. “Todo construído em concreto armado, sua solução estrutural somente se daria pela engenhosidade de Baumgart, que inventou lajes estruturais de ‘caixão perdido’ – técnica que seria implementada em quase todas as obras de arquitetura realizadas a partir de então”, conta Freitas. Segundo ela, o Mesp foi o laboratório experimental da arquitetura moderna, tanto em questões de projeto, quanto construtivas. Diversas soluções lá implantadas são usadas até hoje.
 
(Em certas tardes, nós subíamos ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam.
Ganhava um pulmão de cimento e vidro)
 
Modernas tecnologias construtivas utilizando concreto armado e estruturas metálicas, a busca por novos materiais e o uso de complexos programas de computação ditam o ritmo das construções contemporâneas. Os trabalhos de profissionais estrangeiros, como o do espanhol Santiago Calatrava (que projetou, dentre outras obras, a Cidade das Artes e das Ciências, em Valência, Espanha), do italiano Renzo Piano e do britânico Richard Rogers (que, juntos, projetaram o Centro Georges Pompidou, em Paris) destacam-se neste sentido.
 
O trabalho do arquiteto brasileiro João Figueiras Lima (Lelé) une inovação tecnológica e do espaço. Ele é pioneiro no emprego de tecnologias construtivas ‘low-tech’, utilizando peças leves de argamassa pré-moldadas em suas obras. Com essa tecnologia, construiu os hospitais da rede Sarah Kubitschek em Salvador, Fortaleza, Rio de Janeiro, e fez a ampliação do hospital de Brasília.

Conforme Freitas, no entanto, o Brasil ainda possui pouco destaque no cenário de inovações da construção civil. “Ainda vivemos um processo de importação de ideias. Há grandes investimentos em infraestrutura urbana e grandes obras de engenharia sendo realizadas em todo o país, mas há pouco interesse na inovação estrutural e arquitetônica. Não têm sido criados símbolos novos para uma nova nação. Apenas são reproduzidos conhecimentos construtivos já dominados aqui, ou no exterior.” Inovar requer investimentos e mobilização de interesses. “O que motiva a arquitetura e a engenharia a desafiar os próprios limites são as propostas e os projetos inovadores. Incentiva-se a inovação com recursos, e com a realização de concursos públicos de projeto, tanto para o projeto arquitetônico quanto para a construção”, afirma a professora.
 
A água, o vento, a claridade: de um lado o rio, no alto as nuvens, situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples
 
As ideias e a busca por soluções para os problemas que afligem as pessoas são o motor da engenharia. “O conhecimento do engenheiro deve ser específico, porém contextualizado. Daí a importância da formação ampliada e de uma visão holística dos problemas da sociedade”, situa Argollo. “Existem na História inúmeros exemplos de ‘engenheiros’ que empregaram seu gênio no desenvolvimento das artes e da cultura de maneira geral. Assim como os que se utilizaram da engenharia para promover a civilização. E a ideia de progresso da civilização move os engenheiros no sentido de desafiar seus próprios limites”, conclui.

 
Saiba mais:
Uma breve história da engenharia. Artigo de Ariston Alves Afonso e Nélio Fleury.

*  O título e os subtítulos desta reportagem foram extraídos do poema “O Engenheiro”, do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

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